18 janeiro 2010

News Release 1442 : A LESTE TUDO É NOVO


Faro [Portugal], 18.01.2010, Semana 04, Segunda-feira, 19:15

A recente reintrodução das ligações ferroviárias da CP entre Elvas e Badajoz (13/12/2009), permitiu-me realizar algo que há muito pretendia: inteirar-me “in-loco” dos progressos realizados na construção da LAV-Extremadura, parte integrante da extensão da Rede Transeuropeia de Alta Velocidade a Portugal, e da qual a imprensa tem feito algumas referências vagas, no meio da infindável gritaria que se vem fazendo sentir contra o TGV e (também) antagonizando o caminho de ferro em geral, esse “pérfido sorvedouro” dos nossos “preciosos dinheiros de contribuintes”, subtraídos à educação, aos hospitais e às gerações futuras, “bem encartadas” no presente.

Viajei para Madrid a seguir ao Natal, beneficiando das promoções “low-cost” da RENFE no Lusitânia Tren-Hotel (sim, “low-cost” não é um exclusivo dos aviões, e vai ser regra generalizada no futuro serviço de “alta velocidade”, acessível a todos). E à vinda, realizei a viagem de dia, no serviço Regional-Expresso da RENFE R-598, com partida de Madrid-Atocha Cercanias às 9h53mn. Num material circulante impecável (unidade tripla Diesel moderna, com menos de cinco anos) fomos percorrendo a radial da Extremadura, parando em Villaverde-Alto, Torrijos, Talavera de la Reina, Oropresa de Toledo, Navalmoral, Plasencia, Cáceres... numa manhã chuvosa, o conforto e o silêncio proporcionado pela notável insonorização da unidade R-598, quase nos fizeram esquecer a observação cuidada da paisagem, na busca de qualquer indício de nova construção, bem ao lado da ferrovia convencional, como de resto se prevê em plantas do “Estudio Informativo” com a chancela do “Fomento” a que fortuitamente tivémos acesso, num Forum Espanhol da web. Mas, até Cáceres nada vimos de particular interesse, aparte do trajecto em si, bem acidentado na zona entre Rio Tajo e Cásar de Cáceres, onde a existência de uma curva “ferradura” (permitindo à ferrovia ganhar cota, afastando-se da albufeira do Tejo), lembra-nos que estamos num troço de linha com rampa característica de 23/1000, de “exploração inamiginável”, para diversos “especialistas” e “peritos ferroviários” da nossa praça.



Da nossa bem preenchida unidade R-598, muitos passageiros que connosco subiram em Madrid, apearam-se em Cáceres, com um importante contingente Extremenho tendo já entretanto tomado de assalto a quase-totalidade dos lugares disponíveis, em Plasencia, para se dirigir a Mérida e Badajoz. À saída de Cáceres vemos afastar-se à nossa direita, no sentido da marcha, o Ramal dirigido a Valência de Alcântara, recentemente renovado, no meio de umas instalações industriais em desuso, no arrabalde de Aldea Moret, reminiscência das actividades mineiras de outrora, ligadas à extracção de fosforites, e que serviram de mola impulsionadora à construção desse atalho para Lisboa, aberto ao tráfego em 1880, e tornado, à luz das circunstâncias, a linha internacional unindo as capitais Ibéricas, sob a égide da velha companhia do “Ferrocarril Madrid-Cáceres-Portugal” (MCP). Resta-nos percorrer umas derradeiras sinuosidades a Sul de Cáceres, até o traçado se assumir predominantemente rectilíneo.

Na mudança súbita de paisagem, onde a sinuisidade da linha se desvanece, avista-se repentinamente à direita, um enorme aterro avermelhado. Um “estradão” inacabado insinua-se ao lado da via férrea, possuindo já pequenos viadutos e muitas passagens hídricas. A certa altura, afasta-se das nossas directrizes, para cruzar connosco, e passar para a esquerda do sentido de marcha. Passamos a baixa velocidade numa estação chamada Aldea del Cano, onde um estaleiro e uma considerável concentração de máquinas de construção civil, nos confirmam que estamos efectivamente perante as obras de construção da LAV-Extremadura. E ao longo do nosso trajecto, quase até chegarmos a Mérida, não mais deixaremos de contar com a companhia do “estradão”, onde algumas passagens hídricas se encontram ainda sob a forma de aduelas por montar, e em outros casos se encontram já montadas, e devidamente revestidas de geo-têxtil. Não conseguimos precisar com acurácia bastante, o ponto onde esta frente de obra pára. A menos de uma vintena de quilómetros de Aljucén, talvez? De todas as formas, e atendendo ao facto de que a estação de Mérida, comportando simultaneamente a LAV, de 1435mm, e rede convencional de 1668mm, será deslocada para Ocidente, e ainda existirá uma “ronda” exterior à cidade, destinada ao trânsito de serviços sem paragem na histórica capital da Lusitânia (hoje, classificada, a par de Évora, como Património Mundial), é normal que a frente de obra se quede a alguns quilómetros da cidade sede do Governo Autonómico Extremenho.

Passamos Aljucén já na companhia da linha oriunda de Badajoz. A reversão em Mérida é obrigatória, assim como a passagem, por duas vezes, sob os restos do monumental aqueducto Romano. Das três linhas Extremenhas bifurcadas a Oeste, do tronco oriundo de Ciudad Real e Puertollano, Zafra, Badajoz e Cáceres (contadas da esquerda para a direita), todas intersectam o monumento na prependicular, mas desconheço se parte do mesmo terá sido demolido no séc. XIX, ou se encontraria já em ruína, aquando da construção de cada uma destas vias férreas, por parte das antigas companhias do Ferrocarril Madrid-Ciudad Real-Badajoz e (mais tarde) do grande sistema ferroviário Madrid, Zaragoza y Alicante (MZA). Para a grandeza do seu feixe de linhas, Mérida parece ter presentemente um movimento modesto ao longo do dia. Quando chegámos, ia sair antes do nosso serviço, um R-598 oriundo de Badajoz, fazendo a viagem contrária até Madrid-Atocha, ao mesmo tempo que uma automotora tripla reabilitada “camello”, se preparava para partir, em direcção a Cabeza del Buey e Puertollano, ponto a partir do qual já há correspondência assegurada para os serviços de regionais de alta velocidade “Avant”, perfazendo os 210 Km até Madrid num tempo de 1h10mn.



Recomeçámos a marcha e, na segunda e obrigatória passagem em Aljucén (desta vez na linha dirigida a Badajoz), impressionou-nos o facto de uma tão minúscula estação se encontrar guarnecida com pessoal, e ainda por cima jovem. De resto, e ao longo das centenas de quilómetros já percorridos desde a capital de Espanha, foi sempre possível avistar estações como Cañaveral ou Mirabel com presença humana, apesar da existência de “BAU” equivalente a um CTC, coisa que em Portugal, constitui motivo para lindos edifícios de passageiros (alguns dos quais magnificamente mantidos em cosmética), não passarem de arrecadações vazias, decorando a paisagem de forma pontual. À nossa esquerda, o Guadiana está mais caudaloso e barrento do que nunca, acusando as fortes chuvadas dos últimos dias, e depois de algumas curvas, o traçado volta a ser dominado por grandes rectas. E antes de passarmos Garovilla, lá aparece à nossa direita, um grande terrapleno, que depois se transforma num traçado consolidado paralelo à via larga, até aos arrabaldes de Badajoz. Aqui, contrariamente ao que se avista entre Cáceres e Mérida, já existe uma obra quase terminada, com inúmeras situações de coexistência de novas e velhas passagens superiores rodoviárias, aptas a abarcar até 4 vias, com as antigas concebidas apenas para uma eventual duplicação da via larga convencional, as quais serão, a breve trecho, demolidas, apesar do carácter relativamente recente de muitas. Falta, claro está, a superestrutura de via, catenária e telecomunicações, a qual entrará em serviço nos testes precedendo a exploração, prevista para 2013. Um afrouxamento da marcha não previsto no horário, custará um atraso de cerca de 20 minutos à chegada a Badajoz. Em Montijo, última paragem do R-598 antes da estação final, o feixe de vias de 1668mm parece ter desaparecido no decurso das obras de construção da nova plataforma da LAV, e há um “atasco” anormal dos passageiros na única plataforma em serviço, correlativa ao EP.

Perdemos a vista à formação da LAV alguns quilómetros antes de Badajoz, quando já há pavilhões industriais e arrabaldes incaracterísticos, pré-anunciando a chegada do nosso serviço ao seu destino final. A informação que temos, por parte da descrição do Ministério de Fomento, é a de que a LAV-Extremadura (à nossa direita, no sentido da marcha), contornará Badajoz pelo Norte, passando pelas proximidades do nó rodoviário de Gévora da A-5 (Autovía Madrid-Portugal), inflectindo depois para Sudoeste. No ponto em que a LAV intersectar a via convencional de 1668mm actualmente dirigida a Elvas após ter passado por Badajoz, esta última abandonará o histórico trajecto inaugurado em 1863, passando a emparelhar com as linhas de 1435mm até ao novo terminal de Caya/Caia-AV, ainda em território de Espanha. A estação internacional de “alta velocidade” contará com duas vias centrais de passagem, sem limitação de velocidade (até à permitida pela parametrização do traçado), e quatro vias correlativas munidas de plataforma, às quais se juntará a componente convencional, constituída por duas vias largas, permindo correspondência de/para os serviços de “alta velocidade”. No lado de Portugal, estará o terminal logístico do Caia/Caya, cujo grande feixe de linhas será de 1668mm. Daí em diante, a via larga única acompanhará a LAV até Évora-Norte, não sem que antes exista uma junção triangular, facultando a ligação física com a Linha do Leste, e a actual estação de Elvas.



Sem grande interesse na cidade de Badajoz, aguardei pacientemente pela saída da correspondência para a Linha do Leste, até ao Entroncamento. Mesmo com o extra de 20 minutos além das 15h40mn prescritas no horário, custou-me a fazer tempo até às 18h30mn locais, dado o carácter relativamente excêntrico da estação de Badajoz, localizada num antigo arrabalde da margem direita do Guadiana, afastado do núcleo histórico da cidade. O tempo meio-chuvoso também não se mostrava particularmente convidativo a grandes caminhadas. Na Linha 3, estava a Allan remodelada 363, silenciosa e quase anónima, como um veículo ferroviário misterioso, no seu alegre verde-alface. Aproveitei para dar um giro pela estação, para constatar que não havia afixada qualquer indicação de serviços oriundos/destinados a Portugal, contrastando com a prática de tempos não muito distantes, quando três a quatro relações diárias oriundas e/ou destinadas de/para Lisboa-Santa Apolónia, tinham honras de figurar num quadro luminoso próprio, encimado pela indicação “Dirección Portugal” (junto a este, e no quadro relativo ao sentido oposto, havia uma variedade de serviços, hoje desaparecidos, incluindo-se nos mesmos, uma relação nocturna com Madrid, via Ciudad Real-Manzanares (“Estrella Guadiana”), todos com ligações asseguradas de/para o país vizinho). Nos bancos do vestíbulo, uma passageira portuguesa desespera pela saída, desconhecendo se ainda conseguirá chegar ao Porto, nesse mesmo dia. Dou-lhe a informação que muito provavelmente não terá problemas, já que no Entroncamento passa, bem depois da chegada da automotora, o último Inter-Cidades ascendente do dia, na Linha do Norte.

Às 18h10mn, a veterana automotora Allan, com mais de meio século, até então mergulhada numa silenciosa letargia, ganhou vida, e aproveitámos para subir. O serviço internacional, reintroduzido há cerca de duas semanas é mais concorrido do que se poderia esperar, com um número considerável de residentes ao longo das localidades da Linha do Leste a entrarem no veículo. Partimos pontualmente às 18h30mn, com a noite caída precocemente, ajudada por um céu encoberto e tempo chuvoso. Cerca de 24 minutos é o tempo que leva a percorrer os 16 Km até Elvas, dado o mau estado da via. Com o desvio para a nova estação de “alta velocidade” do Caia que se prevê, é bem provável que parte importante deste troço, nunca venha a ser objecto de qualquer reabilitação, já que todos os serviços locais da rede convencional que existirem entre Elvas e Badajoz, processar-se-ão através do novo trajecto, maioritariamente paralelo à futura LAV, com passagem obrigatória pelo terminal fronteiriço, que será o grande interface regional. Não ultrapassando uma velocidade de “ponta” de 30 Km/h, chegamos finalmente a Elvas, onde embarcam mais alguns passageiros. Até Santa Eulália, somos agradavelmente surpreendidos com rasgos de 80 Km/h, tornados possíveis num troço da Linha do Leste recentemente intervencionado pela REFER. Tendo estado numa condição bem menos favorável, lembro-me que Santa Eulália chegou a ser desprovida de linha de cruzamento, quando uns “iluminados” da “racionalização” da exploração, se preparavam à socapa e aos poucos para colocar a Linha do Leste no vasto rol de ferrovias defuntas e desactivadas, cuja mortalidade – hoje mais mitigada – era particularmente alta, na época do “oásis económico”, criado pelo providencial “homem do leme”, na década de 90, do séc.XX.



Passou Santa Eulália. E regressa a via em mau estado, que nos acompanhará até à Torre das Vargens, com a monotia de uma marcha, raramente acima da trintena de quilómetros horários. O teor das conversas dominantes a bordo, traduzia de forma inequívoca o facto incontornável de nos encontrarmos em Portugal, com o contributo espontâneo de um “animador cultural”, exímio na arte da maldicência e da mediocridade. Os dois grandes males do país, segundo a sua récita doutrinal, eram o Governo e o TGV: o “comboio dos doutores” - apontava ufano - ao mesmo tempo de que se gabava dos seus tempos de juventude, em que havia gozado uma “grande vida”, em Angola.

Em Portalegre subiram uns quantos jovens (provavelmente estudantes do Politécnico local). Também fariam questão de ser “politicamente correctos”, ao dizer com redobrada certeza, “que nunca construíram qualquer TGV”, enquanto a linha onde viajavam permanecesse tão má, sem sequer lhes ocorrer que a escassos quilómetros dali, em território de Espanha, de onde provinha a velha automotora que haviam acabado de tomar, se estendiam já dezenas de quilómetros de traçado pronto a acomodar a LAV, unindo as capitais Ibéricas. E ainda segundo eles, “ninguém viajaria de TGV para Madrid, porque de carro é mais barato”. Tivessem olhado com alguma atenção para o exterior em Torre das Vargens, onde nos demorámos o tempo bastante para engatar outra Allan, proveniente de Marvão-Beirã, superlotada de escoteiros, e teriam avistado um conjunto de máquinas de renovação de via de empreiteiros contratados pela REFER, prontas a iniciar a sua tarefa de reabilitação na restante linha do Leste, até Santa Eulália. Mas será que a sua tacanhez intrínseca lhes permitiria lobrigar semelhante clarividência? Pela minha parte, apenas me interroguei a mim próprio, sobre o país onde me encontrava, o qual depois de ter vivido quase meio-século de regime ditatorial, estava agora, ao cabo de 36 anos de Democracia e outros 24 de Integração Europeia, a transformar-se numa coutada de boçalidade à solta. Mas o Progresso, tal como a História, não se compadece dos fracos. Nem muito menos dos espíritos débeis.

O resto da viagem, até ao Entroncamento, não teve mais que contar, para além do cruzamento em Abrantes, sob chuva, com um IC da Beira Baixa, e do avistamento, no Tramagal, de uma MLW 1550, encabeçando uma composição de vagões carregados de novas travessas (a aplicar provavelmente na modernização em curso, ao longo da Linha da Beira Baixa, a Norte de Castelo Branco). E à chegada, as imagens ainda frescas do nosso périplo Extremenho não nos deixavam quaisquer dúvidas: a Leste, tudo é novo.


Manuel Margarido Tão

Sem comentários:

Enviar um comentário

Edite a sua mensagem, de forma moderada e não utilize linguagem imprópria ou ofensiva, porque se utilizada e dirigida a pessoas ou instituições, será logo que detectada, imediatamente apagada e não são aceites comentários de pessoas anónimas. Não forneça os seus dados pessoais como telefone ou morada.