24 maio 2010

News Release 2104 : Lembranças do 'meu' Comboio do Monte


Faro [Portugal], 24.05.2010, Semana 22, segunda-feira, 12:21

Com cortesia, editamos na íntegra, notícia dos media na internet, com informação ferroviária relevante.

Fonte: Diário de Notícias (da Madeira)
Autor: Leandro Jardim
Data: Ontem

O Fernandes Rosa, seguro, rodou o volante. O gás pressionou os mecanismos de locomoção e os arranques, por safanões,aconteceram. De imediato a locomotiva adquiriu velocidade.
Data: 23-05-2010

A manhã de 17 de Maio de 1943 chegara clara e fresca. Desde muito cedo, a máquina nº 5 passava pelas últimas revisões de funcionamento, nas oficinas da companhia, no Pombal.

O Primeiro Mecânico, Agostinho Quinta, supervisionava toda a equipe técnica que fora convidada para o fim em pauta, naquele dia - a subida de 'comboio' ao Terreiro da Luta, em passeio, e retornando ao Monte para o almoço no Grande Hotel Belmonte. Depois do regresso ao Funchal, as despedidas seriam ao meio da tarde, na gare da Estação, na cidade.

O projecto e os convites para o evento que se aviava, foram idealizados pelo novo proprietário do 'Caminho de Ferro do Monte', o importante empresário na cidade do Porto, senhor Francisco Alves de Sousa, que facilmente agrupou amigos para a "última viagem" daquele tão querido, como tradicional, veículo de transporte de passageiros, findando assim, e para sempre, a actividade na Madeira.

Sobre essa ideia de um passeio de comboio, a tamanha altitude, incluindo depois um requintado almoço no Hotel Belmonte, fez-se resguardar a notícia num sensato sigilo. Isso, por defesa e bairrismo, de o Caminho de Ferro ter influído sensivelmente na economia e na socialidade da região do Monte e também por recomendáveis cuidados de passadas experiências trágicas, que não convinha afastá-las do bom senso. Bastaria um rudimentar entendimento técnico de máquinas a vapor, e já bastante usadas, sabendo-as paradas, lado a lado com enferrujados ferros velhos, durante quase quatro anos, para recomendar prudência.

Alguns homens não acreditavam que a força motora dinamizante da roda dentada, voltando a engranzar na cremalheira, viesse, depois de vários anos inactivos, a funcionar de novo sem qualquer perigo! A subida do Funchal para o Terreiro da Luta exigia muito esforço a qualquer material de locomotiva. Na existência da Companhia houve vários acidentes graves! Nem todos os convidados compareceram.

O mecânico Agostinho Paulo de Freitas (Quinta, por apelido paterno) era especializado na máquina nova fabricada na suíça, desde que foi montada e, obviamente, experimentada na linha pelo engenheiro acompanhante que teve também a finalidade da formação do pessoal técnico.

Entre a inteligência e a força bruta da locomotiva nº 5 do Caminho de Ferro do Monte, acontecia como que um 'entendimento' recíproco, um 'quê solidário'; de certezas, de comprovadas demonstrações de uma tecnologia que foi avançada… Ninguém como o primeiro mecânico, Agostinho Quinta, o silencioso profissional, pingando o viscoso óleo da almotolia também suíça, oferta do engenheiro montador (e que ninguém ousava tocá-la…), ensaiava consigo mesmo, um sorriso de confiança, quase inglês…, quando as dúvidas de desconhecidas opiniões caiam na caldeira e se esfumavam, ante as certezas que o próprio maquinismo amaciado pelo mecânico lhe demonstrava "vis-à-vis".

Chegavam as 10 horas do dia 17 de Maio de 1943. O fogueiro Joaquim da Gama subindo ao seu lugar olhava para o labor. José Fernandes Rosa, o suado maquinista, apurava todas as limpezas na cabine, e fazia as leituras dos mostradores de pressões várias de vapores e de óleos. O João Ornelas tomara, aprumado, o lugar de guarda-freio, na frente do carro que estava muito asseado. Diogo Fernandes, encarregado da linha, do alto da sua estatura, alisava o bigode típico quando, o mecânico Agostinho Quinta lhe respondeu ao indago que por expressão facial aquele lhe fizera. No seu toque de boca murmurou "tudo - num - brinquinho…" Indo ter com o tenente Alcino Freitas Silva, adiantou-lhe que "tudo estava pronto…" Os passageiros podiam enfim procurar os seus lugares! O ambiente era de emoção. O fumo negro saía em bulcões da chaminé! O vapor estava em alta pressão. Chiavam as válvulas de escape! A estação encheu-se de fumarada de mais vapores e de cheiros pestilentos de untada, queimadas de hulha e óleos! Às 11horas e 10 minutos da manhã, silvou o vapor no apito, puxado por um arame fino de aço.

O Fernandes Rosa, seguro, rodou o volante. O gás pressionou os mecanismos de locomoção e os arranques, por safanões, aconteceram. De imediato a locomotiva adquiriu velocidade. No percurso, varias vezes, o comboio apitava intermitente… Tal surpresa impressionou os habitantes das laterais do caminho de ferro. Os corações bateram ao ganharem a consciência do evento, por saudade e de esperança.

Mas, a guerra continuaria ainda por mais quase dois anos...

Na escola das Babosas a pequenada soubera que a "máquina nova" tinha passado com passageiros para o Terreiro da Luta. Que no retorno, ía ficar parada frente à entrada do Hotel Belmonte. O que sentimos nesses momentos de novidades raras, de saudades que tínhamos do "nosso" comboio, aqui e agora, é-me indizível; porque o comboio fazia parte dos nossos 9 anos e entrara no nosso mundo de sensacionais emoções e até mesmo dentro da nossa família… À saída das aulas, em algazarras, a garotada correu para o sítio do Atalhinho. Lá, estava a "máquina nova" ciciando vapores brandos aos homens que cuidavam dela. Repousando, expelia fumos e vapores em ondas trémulas de calor.

O menino curioso, a cuidada distância, queria ver tudo! Acocorado, queria explorar de vista, o oculto que a fazia andar! A "máquina nova" tinha alma; e rodas, e êmbolos, e fogo, e vapor..."Quando eu for grande, quero ser como o primo Agostinho, que sabe tudo daquilo, até mesmo sabe levá-la…" - pensava o menino, quando foi surpreendido pelo próprio Agostinho Quinta.

- Que fazes aqui, pequeno? - 'Tou vendo como a é que a máquina anda. O que é que a faz andar?...

- Vai estudar, menino! Um dia, eu te conto como a "máquina nova" anda… - Quando?!!...

Passaram-se muitos anos. A 'máquina nova', a nº 5 da Companhia do Caminho de Ferro do Monte, embarcou para o Porto. As vozes do povo baixavam quando aos magotes, trocando opiniões do que pensavam mal pensado: de que - disse-se - o Caminho de Ferro fora vendido para ir para um país longe e ser tudo transformado em canhões 'Krupp'. Os homens que a lidaram foram-se indo aos poucos… O Agostinho Quinta imigrara para o Curaçau, num barco grande, cinzento e muito feio, que atracou no pequeno molhe da pontinha. Depois, foi para a Venezuela como técnico de máquinas de extrair petróleo. Lá, viveu muito bem, "como um inglês", e gastou do bom e do melhor, contou-me. Um dia, voltou doente. Eu já era rapaz. Encontrávamo-nos e falamos longas horas sobre as máquinas e sobre as experiências humanas. Já não lhe perguntei mais sobre como era que andava a "máquina nova", a nº 5. Volta e meia, ela ainda passa linda e ligeira pela minha imaginação.

O Agostinho Quinta faleceu no sanatório Dr. João de Almada.

Os convidados do Sr. Francisco Alves de Sousa tomaram o carro para a descida. O guarda-freio fê-la apitar 3 vezes. Os beijos de vapor soltaram-se, em som estridente, desfazendo-se pelo ar do Monte... Eu conheci, de vista, o tenente Alcino por ter sido um conhecimento profissional do meu pai. Conheci de perto, o Sr. Diogo, o Rosa da Corujeira, o Ornelas, o Gama… Já a todos, o trem que nunca falha, veio à hora certa de cada um e levou-os… De pé, junto ao guarda-freio, empertigado, e atento, estava o Agostinho Quinta, com o seu ar de engenheiro inglês… Desfreando lentamente, como se não quisesse partir, "o comboio", ainda que os ruídos característicos das ferragens lassas fossem inevitáveis, embalançando, foi descendo a Confeiteira para a cidade. O menino tinha a sua alma cheia de alegria! Como que num deslumbramento viu a "máquina nova" desaparecer no declive… Então… o menino voltou para casa pontapeando a calçada do caminho como quando se perdia um brinquedo querido, um algo de utilidade, ou alguém de estimação. À tardinha, contou ao pai que a "máquina nova estava mesmo nova!.." Ainda havia guerra lá fora…!
Quando o menino acabou as duas cópias de tarefa escolar, rematou-as como exigia a professora Dona Augusta:
Monte, 17 de Maio de 1943
Leandro Freitas Jardim.


Paulo Almeida



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